As torres e os bosques: Escombros da cidade fordista por Jiôn Kiim
25.11.2022 – 11.01.2023
A paisagem da cidade contemporânea é uma composição de estratos arquitetónicos e geológicos que contam a(s) sua(s) história(s). Numa deriva fotográfica, As torres e os bosques dirige a nossa atenção para um estrato em particular: o dos escombros da cidade fordista. Jiôn Kiim tem levado a cabo uma investigação fotográfica sobre ruínas industriais no Grande Porto à procura da temporalidade própria desse abandono, e da suspensão dos ritmos contemporâneos frenéticos. Após um primeiro encontro em 2015 com o Palácio Ford, a artista continuou a dar de caras com fábricas abandonadas, até eventualmente começar a fotografá-las. Em 2018 colaborou com Artur Leão para publicar o livro Fendas Intemporais (Scopio Editions), reeditado em 2021 como scopio newspaper #6. Mais recentemente, a artista notou a crescente dificuldade em entrar nestes espaços, muitos bloqueados ou destruídos, seja por motivos de segurança, seja por se estarem a preparar empreendimentos imobiliários que trarão uma nova funcionalidade a estes espaços.
As torres e os bosques é o resultado de uma nova metodologia. Deixando para trás o mapa que a guiava, Jiôn Kiim fez uma deriva pela cidade, seguindo as pistas que apareciam no céu. A artista encontrou sobreposições curiosas de imponentes torres com fundos contrastantes e diversos. Em muitos casos, estas torres – chaminés industriais de tijolo – são o que resta de muitas das antigas fábricas do séc. XIX e da primeira metade do séc. XX. Com o alargamento das redes de distribuição e transporte a indústria foi-se movendo para zonas mais periféricas da cidade. Finda a sua funcionalidade produtiva, resistem como património industrial, abandonadas e inúteis, como monumentos históricos. Na fenda temporal que se abre entre as torres e os edifícios que entretanto surgiram em seu redor, a artista procurou captar a absurdidade destas composições e o que representa a sua patrimonização: nalguns casos, a valorização fetichista de empreendimentos imobiliários; noutros, a cristalização na memória coletiva desta fase histórica; noutros ainda, uma espectralidade que nos deixa entrever o contraste entre o ímpeto industrial e os terrenos vagos.
Num segundo movimento, a deriva embrenha-se nos bosques que crescem nas ruínas baldias. Abandonadas, tornam-se terreno fértil, a vegetação cresce de forma selvagem, e são habitat para formas de vida particular. São espaços aonde, por via de um encantamento, o funcionamento ordeiro da cidade não chega. Na sua invisibilidade e discrição, abrem-se a uma multiplicidade de práticas que a cidade tende a rejeitar. Aqui procura-se refúgio em momentos de dificuldades, encontram-se superfícies abertas à expressão artística, deixa-se comida para gatos que se escondem. A pressa e pulsão civilizatória da ordem e da higienização não se sentem. Nestes espaços, e nas imagens que aí recolhe, a artista procura uma interrupção momentânea da excessiva positividade que define a sociedade contemporânea. Como sugere Byung-Chul Han, a exploração imposta outrora por via disciplinar, através de métodos inventados nas fábricas, é exercida agora através de sucessivas imposições sobre-positivas e estimulantes, afetando as nossas relações sociais e a nossa auto-representação. Os bosques são lugares da suspensão desses impulsos e, por isso, lugares de regeneração da cidade.
Talvez apenas na decadência destas fábricas concretas se possa encontrar refúgio de uma sociedade definida pela difusa industrialização generalizada universal – que Ernest Mandel opunha à ideia de uma sociedade pós-industrial. E talvez seja irónico o regresso da artista a estes espaços para “produzir” fotografias que transformam em algo produtivo estes espaços improdutivos. A história recente das cidades reforça a lição de Rosalind Krauss (a partir de Jameson): ao propor uma “alternativa utópica, ou uma compensação, a um certo pesadelo induzido pela industrialização ou comodificação, [o artista] está ao mesmo tempo a projetar um espaço imaginário que, se se enforma a partir da estrutura desse mesmo pesadelo, trabalha para produzir a possibilidade do seu receptor ocupar ficcionalmente o território do que será o próximo e mais avançado estado de capital”. Neste projeto, esse paradoxo não se resolve, mas Jiôn Kiim procurou sublimar a contradição e produzir um pharmakon capaz de curar os seus efeitos venenosos. A sua escolha de meio de expressão, a fotografia analógica, envolveu-a na produção de impressões fotográficas durante todo o processo – até à revelação e produção de cada cópia de cada foto (no caso das imagens a preto e branco) na câmara escura. A sua manualidade, a sua temporalidade específica, mas, acima de tudo, o seu modo de produção de imagens caracterizado pela repetição ritual põe esta prática artística numa redentora contradição face aos fluxos contemporâneos.
Esta exposição documenta o percurso percorrido pela artista: um conjunto de torres em diferentes contextos urbanos definem uma deriva, que eventualmente finda na clareira de um bosque. Nestes movimentos de avistamento e imersão, Jiôn Kiim propõe que estejamos atentos às colagens absurdas que emergem com a passagem do tempo, às temporalidades que contrastam com o fluxo da urbanização, e aos processos de transformação da cidade.
Texto e curadoria de João Pedro Amorim
O projeto conta com um livro com o mesmo nome, que pode ser comprado aqui.
Apoio: DG Artes/Ministério da Cultura